quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

sshh

deixa o violão pra lá. esquece esse teclado compulsivo. chega dessa conversa tola e vem. vem e ouve o chiar das panelas, o sussurro dos carros, a textura dos cadernos. escuta o atrito da mão com o papel. ignora os sorrisos amarelos e tenta ouvir a cor do sol e o barulho do ar sacolejando cada uma das células do teu corpo.
(pssh...
) ouve.
presta bem atenção nas confissões do teu travesseiro. cola teus ouvidos na tinta das paredes e escuta o som gelado que elas fazem. ouve o engolir em seco, e não a palavra. e se for pra ouvir palavras, ouça as que transbordam das fotografias. encoste o rosto com vontade em cima da mesa de madeira da tua sala de estar, grude seus ouvidos em todas as peças de madeira que encontrar pela frente e escute as vozes que saem de dentro delas. decore cada detalhe das histórias que elas vão contar.
sinta o som do sangue a pulsar na ponta dos teus dedos. o do piscar de olhos. o da multidão murmurando, como se dissesse uma coisa só mas em tempos diferentes. ouça com a palma da mão o bater do coração - de outra pessoa.

Doriana

ela não sabia quantas vezes ele tinha olhado em seus olhos. talves duas, ou três. talvez mais. ou menos. cerca de duas vezes - e meia, porque a última não conta - nas vinte e sete vezes que tinham se visto. isso ela sabia de cor. vinte e sete vezes em dois meses, ou sessenta e um dias. ele deveria ter um metro e setenta e nove. peso não dava pra saber. duas pintas na bochecha esquerda. na última vez ela o encarou de frente e disse: sessenta dias.
ele não fazia a mínima idéia de a quanto tempo eles se conheciam. parecia muito. e pouco ao mesmo tempo. mas sabia exatamente todas as palavras que ela dissera nestas todas vezes. decorara de tanto repetir as cenas mentalmente. poderia até mesmo imitar seu tom de voz quando pronunciava certas palavras. uma delas era um número: sessenta.

ela nunca sentira tanto calor antes, em toda a sua vida, tinha certeza. nunca suara tanto, nem tivera os cabelos tão curtos e nem roupas tão leves. e mesmo depois de meses e meses debaixo daquele sol quente, ela não conseguira beber nem um gole d'água sem se lembrar da forma morta de sede com que ele bebia qualquer coisa. e olha que lá nem era quente, tinha sempre aquela brisa leve. leve e doce, porque tinha o cheiro dele.
ele ainda sentia frio. mesmo de cueca, meias, outras meias, calça, duas camisetas, blusa de lã, gorro, botas e luvas. pra ele a coisa que mais fazia falta na vida era aquele solzinho e a brisa leve. mas isso foi só até o dia em que a vira pela primeira vez: exatamente debaixo daquele sol, blusa vermelha de manga comprida, como se quisesse inventar o frio. ele bem sonhara em levá-la pra neve. e vestiu mais um casaco, lembrando do cheiro dela.

caminhavam de mãos dadas, serenos. olhos fixos nalguma coisa muito distante dali. não falavam palavra, porque já não era preciso. de longe eles eram, sem sombras de dúvidas, o casal mais bonito do mundo. de perto, o olhar dele era meio irônico e o dela meio neurótico. só pra desmentir. mas bastava a eles estar ali: as mãos bem atadas e o olhar no mesmo ponto distante, por mais que pra chegar até lá perfizessem mentalmente caminhos opostos.
as mãos permaneceriam dadas.
já que afinal, felicidade não tem nada a ver com perfeição ou com comerciais de margarina.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

o amargo da língua

é como se de repente eu não acreditasse em mais nada. e pode parecer um jeito estranho de se começar um primeiro texto de um novo ano, mas é fato. eu não acredito mais nela, nem nele, nem nela, nem neles todos. todas as palavras e atos e até mesmo afetos viraram pó e eu me lembro de todas as vezes em que eu pensei que eu era mais eles do que eu mesma. muito mais. e de certa forma ainda sou, mesmo que às avessas e aos pedaços e não querendo mais ser. o que faz a diferença agora sou mesmo eu, que não acredito mais.
amanheci cética de cansaço de todas as mentiras insistentes que me contam sem cessar, sem me dar o tempo de absorver.
dói o estômago, dói o peito, dói de vontade de gritar pra poder ficar sozinha sem deixar ninguém escapar, pelo menos não antes de ouvir meu grito. dói estômago e o peito e eu não sei mais qual dor vem de onde, quem é o quê e no que eu me transformo nessa história toda.